O STORYTELLING POR TRÁS DO DISCURSO DE DEMISSÃO DO MORO

Nas últimas semanas, um dos assuntos mais comentados dentro do tema “política” foi o discurso do ex-ministro da Justiça Sergio Moro em seu pedido de demissão do cargo.

O assunto chegou inclusive a ocupar um lugar nos Trending Topics do Twitter, com a hashtag “#bolsonarotraidor”.

Tirando o aspecto político e emblemático do discurso, o que me chamou a atenção foram os vários itens de storytelling, sabiamente abordados, gerando toda uma narrativa de envolvimento. Vou demonstrá-los um a um:

 

Análise do discurso de demissão de Sérgio Moro: O mundo comum #1

CENÁRIO

Moro inicia seu discurso demonstrando o cenário que nos encontramos: situação de pandemia mundial, lamentando o que está ocorrendo e situando os ouvintes sobre estatísticas e contextualização.

1º queria lamentar a realização dessa, eu pediria silêncio para falar sem intervenção. Eu queria lamentar esse evento na data de hoje. Nós estamos passando por uma pandemia. Ontem, uma informação lamentável de 407 óbitos, 3.313 óbitos no total. Então, durante essa pandemia, infelizmente tenho que realizar esse evento. Busquei ao máximo evitar que isso acontecesse, mas foi inevitável, então peço a compreensão de todos pela circunstância adversa, mas não foi por minha opção.

APRESENTAÇÃO DO PERSONAGEM

Logo depois. Moro conta um pouco sobre quem é ele, e por que está ali.

Antes de assumir o cargo de ministro da Justiça e Segurança Pública, eu fui juiz federal por 22 anos, tive diversos casos criminais relevantes.

Desde 2014, em particular, nós tivemos a operação Lava Jato, que mudou o patamar de combate à corrupção no país. Claro que existe muito ainda a ser feito, mas aquela grande corrupção, que em geral era impune, esse cenário foi modificado. Isso foi 1 trabalho no Judiciário (…)

 

Análise do discurso de demissão de Sérgio Moro: Chamado à aventura #2

Aqui Moro fala sobre o convite que recebeu para o cargo de Ministro, cumprindo o segundo requisito e um bom storytelling: o chamado a aventura. Ou seja, algo que o tira de seu cotidiano e apresenta um novo cenário a ser explorado.

Final de 2018 , essa é história 1 pouco repetida, eu recebi o convite do então eleito presidente da República Jair Bolsonaro, e já falei diversas vezes, é fácil repetir essa história , porque é essa história é absolutamente verdadeira e fui convidado a ser ministro da Segurança Pública. O que foi conversado com o presidente foi em 1º de novembro, nós teríamos 1 compromisso com o combate à corrupção, o crime organizado e à criminalidade violenta. Inclusive foi me prometida, na ocasião, carta branca para nomear todos os assessores, inclusive desses órgãos, né, policiais, como a Polícia Rodoviária Federal e a própria Polícia Federal (…)

 

Análise do discurso de demissão de Sérgio Moro: Travessia do primeiro limiar #3

Na técnica de Storytelling este é o momento em que o personagem se encontra no “ponto sem retorno” que no novo cenário que escolheu se aventurar, e larga de vez o mundo comum, o qual tinha contato no passado.

Moro fala sobre o abandono dos 22 anos de magistratura e que isso não teria volta, e por isso necessitava de alguma garantia para a sua família.

eu disse que como eu estava abandonando 22 anos da magistratura, contribuí 22 anos para Previdência, e perdia saindo da magistratura essa previdência.

Pedi apenas que, já que nós íamos ser firmes contra a criminalidade, especialmente a criminalidade organizada, que é muito poderosa, que se algo me acontecesse, pedi que a minha família não ficasse desamparada sem uma pensão. Foi a única condição que eu coloquei para assumir essa posição específica no Ministério da Justiça. Permito-me aqui dizer que o presidente concordou com todas, com esse compromisso. Nem foi uma condição, o combate à corrupção, criminalidade violenta, criminalidade organizada.

 

Análise do discurso de demissão de Sérgio Moro: Testes, aliados e inimigos #4

Este é aquela etapa em que o protagonista é testado neste novo “mundo”. Se depara com pequenas missões que o colocam a prova, encontra aliados, inimigos e conhece as regras do novo cenário ao qual se colocou.

Vemos este elemento do Storytelling quando moro fala sobre o dia a dia, combates e atuações dentro do ministério e seu relacionamento com demais colaboradores.

Dentro do ministério, me permitam aqui algumas reflexões, a palavra ‘mote’ tem sido integração. Nós atuamos muito próximos das forças de segurança estaduais e até mesmo municipais. Nós realmente trabalhamos duro contra a criminalidade organizada. Claro que tudo isso é sujeito a críticas e opiniões, mas não houve 1 combate tão efetivo à criminalidade organizada como houve durante essa gestão do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Trabalhando não contra, mas com os governos estaduais. 

Tivemos o caso, por exemplo, da transferência e isolamento das lideranças do PCC. Tivemos recentemente a prisão da maior autoridade do PCC em liberdade, que ficou 20 anos foragido, graças a 1 trabalho de investigação eficiente da Polícia Federal. Tivemos recorde de apreensão de drogas no combate ao crime organizado, isso é importante, tirar droga das ruas, cocaína, maconha. Isso feito pela Polícia Federal e pela Polícia Rodoviária Federal, um belíssimo trabalho desenvolvido. Tivemos recorde de destruição de plantação de maconha, no Paraguai, que é nosso principal fornecedor. 

(…)

No momento, o Ministério da Justiça está voltado principalmente ao enfrentamento da pandemia. Isso prejudicou 1 pouco os planos em curso, embora eles continuassem. Nós estamos cuidando principalmente de EPI, vacinação, de atenção às forças de segurança, de coordenação, de se preocupar com 1 plano nacional de segurança.

(…)

Eu lembro aqui 1 dos primeiros projetos que nós fizemos no Ministério da Justiça logo no início. Foi uma campanha motivacional para os servidores e o tema era ‘Faça a coisa certa sempre’. Então esse sempre foi o mote, sempre foi a palavra, frase de ordem do Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Faça a coisa certa, não importam as circunstâncias, arque com as consequências. Isso faz parte.

 

Análise do discurso de demissão de Sérgio Moro: Aproximação #5

Seguindo nossa história, o protagonista tem êxito nas pequenas provações nas quais foi colocado, deixando claro que é a escolha correta para, mais tarde, ser posto a provação final.

Moro fala sobre os números e conquistas enquanto esteve no comando do ministério:

Acho que, com tudo isso, nós conseguimos resultados expressivos. Alguns deles eu já mencionei, como as questões de combate ao crime organizado. Mas nós tivemos aqui, permite-me dizer, uma redução expressiva da criminalidade em 2019. Tudo bem, já tinha uma queda em 2018, mas em 2019 nós tivemos uma queda em percentuais sem precedentes históricos: menos 19% de assassinatos. Outros crimes também caíram percentualmente até de maneira mais significativa. Mais de 10.000 brasileiros deixaram de ser assassinados.

Claro, é um resultado compartilhado com os estados e com os municípios onde tem o combate à violência. Ninguém tem dúvida disso, ninguém quer invocar esse mérito específico de maneira exclusiva. Até porque a proposta do Ministério da Justiça sempre foi integração: importa o resultado, não quem leva a medalha no final.

Mas é muito significativo, e isso me deixa muito feliz, que nesse 1º ano nós tivemos resultados assim tão positivos para a queda de violência que era uma grande aspiração da população brasileira para obtermos. Ainda temos que melhorar muito esse cenário, mas, enfim, esse é um trabalho que é permanente e duradouro.

 

Análise do discurso de demissão de Sérgio Moro: Provação suprema #6

Neste trecho o protagonista é colocado perante o maior embate de sua aventura. Normalmente é uma situação que tem um alto preço moral ou físico e um embate direto com o antagonista.

No Storytelling de Moro, ele começa a falar sobre os desentendimentos e desalinhamentos com o chefe do executivo, Jair Bolsonado (o vilão da nossa história):

Bem, em todo esse período tive apoio do presidente Jair Bolsonaro em vários desses projetos. Outros, nem tanto. Mas, a partir do 2º semestre do ano passado, passou a haver uma insistência do presidente na troca do comando da Polícia Federal. Isso, inclusive, foi declarado publicamente pelo próprio presidente.

Houve 1 desejo de trocar o superintendente da Polícia Federal do Rio de Janeiro. Sinceramente, não havia nenhum motivo para essa substituição. Mas, conversando com o superintendente em questão, ele queria sair do cargo por questões exclusivamente pessoais. Então, nesse cenário, acabamos concordando, eu e o diretor-geral, em promover essa troca, com uma substituição técnica, com a substituição de 1 indicado pela polícia. 

(…)

Eu tinha notícia quando assumi aqui o Ministério da Justiça de que pelo menos havia rumores de que a Polícia Rodoviária Federal tinha em algumas superintendências indicações políticas. Eu escolhi o diretor-geral Adriano Furtado, que está aqui presente, ele pode ser testemunhal, que eu falei para ele na ocasião: ‘escolha tecnicamente’. O que não é aceitável, de maneira nenhuma, são essas indicações políticas.

(…)

O presidente, no entanto, passou a insistir também na troca do diretor-geral. O que eu sempre disse ao presidente: ‘presidente, eu não tenho nenhum problema em trocar o diretor-geral da Polícia Federal, mas eu preciso de uma causa, e uma causa normalmente relacionada a uma insuficiência de desempenho ou 1 erro grave’.

E, no entanto, o que eu, durante todo este período e até pelo histórico do próprio diretor-geral, é que é 1 trabalho (que foi) bem feito. Várias dessas operações importantes, combate ao crime organizado, operações também de combate à corrupção que foram relevantes. Poderiam ter até mais operações, mas normalmente essas operações elas maturam durante algum tempo e (no) ano passado em particular ficamos aí 4 meses sem movimentar inquéritos, envolvendo lavagem de dinheiro por uma decisão judicial. Isso também prejudicou 1 pouco os trabalhos.

Mas o trabalho vinha sendo feito e até a quebra dessas estatísticas criminais é um indicador relevante de que o trabalho estava sendo positivo. É, não é uma questão do nome. Tem outros bons nomes para assumir o cargo de diretor da Polícia Federal, outros delegados igualmente competentes. O grande problema de realizar essa troca é que primeiro haveria uma violação de uma promessa que foi feita inicialmente, que eu teria carta branca. 

Em 2º lugar, não haveria uma causa para essa substituição. E estaria claro que estaria havendo ali uma interferência política na Polícia Federal, o que gera um abalo na credibilidade, não minha, mas minha também, mas também do governo, desse compromisso maior que nós temos de ter com a lei, com o rule of law (estado de direito). E ia ter impacto também, na minha opinião, na própria efetividade da Polícia Federal, ia gerar uma desorganização. Não aconteceu durante a Lava Jato, a despeito de todos os problemas de corrupção nos governos. Houve até 1 episódio em que foi nomeado diretor no passado com o intuito de interferência política e não deu certo. Ficou pouco mais de 3 meses.

A própria instituição rejeitou essa possibilidade. E o problema é que nas conversas com o presidente, isso ele me disse expressamente, que é não é só a troca do diretor-geral. Haveria também intenção de trocar superintendentes, novamente o superintendente do Rio de Janeiro. Outros superintendentes provavelmente viriam em seguida, o superintendente da Polícia Federal de Pernambuco, sem que me fosse apresentado uma razão, uma causa para realizar esses tipos de substituições que fossem aceitáveis. Já há muito tempo pelo presidente busquei postergar essa decisão, às vezes até sinalizando que poderia concordar no futuro com essa possibilidade. E até em 1 1º momento pensando: ‘Não, de repente pode ser feito, pode ser alterado’. Mas cada vez mais me venho a sinalização de que seria um grande equívoco realizar essa substituição.

(…)

 

Análise do discurso de demissão de Sérgio Moro: Recompensa #7

Partindo para a conclusão da sua trajetória, o protagonista finaliza o embate com o antagonista e recebe o seu prêmio, que não precisa ser necessariamente físico, pode ser um prêmio moral. Nada mais é do que a solução apresentada para o problema, algo que resolva a questão posta em atrito entre os dois personagens.

Neste momento Moro mostra a solução de saída do ministério, como meio de proteger a instituição e manter o seu posicionamento:

Enfim, sinto tenho o dever de tentar proteger a instituição, a Polícia Federal e, por isso, todos esses motivos… ainda busquei uma solução alternativa, para tentar evitar uma crise política durante uma pandemia, acho que o foco deveria ser o combate à pandemia, mas entendi que eu não podia deixar de lado esse meu compromisso com o Estado de Direito.

(…)

De todo modo, a meu entendimento foi que não tinha como aceitar essa substituição. Há uma questão envolvida do também meu, da minha biografia como juiz e respeito à lei, ao Estado de Direito, à impessoalidade, no trato das coisas com o governo. E eu vivenciei isso com a Lava Jato, seria ali um tiro na Lava Jato se houvesse substituição de delegado, superintendente, ali na ocasião, então eu não me senti confortável, tenho aqui que preservar a minha biografia, mas acima de tudo, tenho que preservar o compromisso, que foi o compromisso que eu assumi inicialmente com o próprio presidente, que nós seríamos aí firmes com o combate à corrupção, crime organizado, com a criminalidade violenta. E um pressuposto necessário para isso é que nos garante… Temos que garantir o respeito à lei, autonomia da Polícia Federal, contra interferências políticas.

 

Análise do discurso de demissão de Sérgio Moro: Caminho de volta e retorno como elixir #8

Após passar por todas as provações, o protagonista retorna a sua origem como um herói. Por essa razão este modelo de storytelling também é chamado de “A Jornada do Herói”:

Dentro de nosso roteiro avaliando o discurso do Moro, temos ele apontando quais serão seus próximos passos, o retorno para sua casa e apontamento das conquistas e benefícios da sua decisão.

Eu sobre o futuro. De todo modo, eu agradeço a presidente da República a nomeação que foi feita atrás. Nós tínhamos um compromisso, eu fui fiel a esse compromisso, acho que estou sendo fiel a esse compromisso no momento em que eu me encontro aqui dentro do Ministério da Justiça.

No futuro, vou começar empacotar minhas coisas. Vou providenciar aqui o encaminhamento da minha carta de demissão. Infelizmente não tem como persistir com o compromisso que assumi, sem que eu tenha condições de trabalho, sem que ele tenha condições de preservar a autonomia da Polícia Federal para realizar seus trabalhos, ou sendo forçado a sinalizar uma concordância, como a interferência política na Polícia Federal cujo os resultados são imprevisíveis.

(…)

O meu futuro pessoal, após disso, eu abandonei esses 22 anos de magistratura. Infelizmente, é um caminho sem volta, mas quando assumi, sabia dos riscos. Vou descansar um pouco. Nesses 22 anos foram muito trabalho, em especial durante todo esse período da Lava Jato, praticamente não tive descanso e nem durante o exercício do cargo de ministro da Justiça e Segurança Pública.

Vou procurar mais adiante um emprego, não enriqueci no serviço público, nem como magistrado, nem com o ministro. Quero dizer que, independentemente de onde esteja, eu sempre vou estar à disposição do País para ajudar, que quer que seja seu poder ajudar nesse período a pandemia com outras atitudes. 

Mas, enfim, sempre respeitado o mandamento do Ministério da Justiça e Segurança Pública nessa gestão, que é fazer a coisa certa sempre. Obrigado”.

 

Ao final do discurso, Moro foi aplaudido de pé, o que demonstra o sucesso e envolvimento do discurso realizado.

A finalidade deste artigo não é dizer se foi certa ou errada, se foi genuína ou não a decisão e declaração do ex-ministro. Mas demonstrar em uma situação prática uma das estruturas de linguagem da produção de conteúdo: O Storytelling.

E aí o que acharam? Comentem aqui, quero saber. E compartiha aquele amigo que você sabe que se interessa pelo tema.